Não adianta convencermo-nos do contrário. Tenhas oito ou oitenta anos, as pessoas vão ser más para ti quando tens uma deficiência.
A postura da minha família (e ainda bem que assim foi) relativamente ao meu braço sempre foi muito neutra: Apercebi-me por mim mesma da deficiência que tinha, sempre me deram tarefas para fazer como a qualquer criança da família, nunca ninguém me escondeu nem me tentaram refugiar no estatuto de coitadinha onde outras pessoas já me tentaram colocar.
Terminando a escola primária, onde convivi durante quatro anos com as mesmas pessoas, aproximam-se os terríveis anos: o segundo e terceiro ciclo. Permitam-me a crítica social, mas as escolas não estão preparadas para lidar com a mínima diferença. Eu não nasci com uma perna na testa nem com uma nádega no nariz - é apenas um braço mais curto que o outro - e ai!, os problemas que isto me causou.
Passei as férias de verão do quarto para o quinto ano mega ansiosa com aquilo que o futuro me iria reservar: colegas novos, escola nova, professores novos! Imensos cadernos diferentes, livros diferentes todos os dias, que bom! Na minha inocência achava que iam ser os melhores anos da minha vida.
No primeiro dia do quinto ano ano caiu-me a ficha. Se na minha escola primária existiam meninos de todas as cores e feitios - sentados em cadeiras de rodas, apoiados em muletas, com trissomia 21, sem ver, sem ouvir ou sem falar - a minha escola nova parecia uma fábrica de meninas e meninos todos iguais, que já se conheciam todos e vestiam-se da mesma maneira. Lembro-me de comprar a correr uma mochila verde-tropa para esconder a mochila cor-de-rosa com flores que tinha usado toda a minha (curta) vida.
Se na minha inocência pensava "se eu não mexer muito os braços nem falar sobre isto, ninguém vai reparar no meu braço nem na minha mão", posso afirmar que o primeiro dia do quinto ano foi um autêntico apalpa-mostra-e-conta. Ainda não se falava em bullying em 2002, mas tenho a certeza que foi isso que me aconteceu.
Ponham-se no meu lugar: tinha 10 anos e nunca ninguém tinha falado comigo sobre a minha deficiência. Vivia perfeitamente confortável com o meu corpo. E de repente há 30 pessoas a quererem tocar-lhe, a levantarem-no, a tentarem esticá-lo. A fazerem perguntas completamente estúpidas.
Como é que escreves?
Como é que consegues fazer x?
Como é que consegues fazer y?
Foi por causa do teu braço que os teus pais se divorciaram?
Porque é que não tentas endireitá-lo?
Porque é que não tentas dobrá-lo?
Já foste ao médico?
Isto tudo antes da primeira aula. Vou pedir ajuda a um dos professores, pensei eu. Isto não vai ser assim todos os dias, não pode. E entro na sala de aula. Íamos ter português. Perfeito, não requer esforços físicos, não dou nas vistas, fico com o braço para baixo o tempo inteiro e no fim da aula falo com a professora.
Problema: ao entrar na sala de aula a professora reparou imediatamente no meu braço. Eu ainda não me tinha apercebido de que era assim tão visível e aparentemente toda a gente reparava. Só queria ter um buraco onde me pudesse esconder.
Quando escolhi o lugar -bem cá atrás, claro - a professora aproximou-se, perguntou-me o nome e foi embora. Aliviada, pensei que pelo menos durante aquela hora e meia não iria ter problemas.
Estava redondamente enganada. Assim que terminou de fazer a chamada, a professora diz algo que ainda hoje enquanto adulta não consigo compreender:
- Temos aqui na turma uma menina (pausa) diferente. Ela vem aqui à frente falar um bocadinho sobre ela. Podes vir aqui, Joana?
Paralisei. Gelei. Se já existisse o Frozen em 2002 eu tinha saído porta fora a cantar o Let it Go com flocos de neve a pairar sobre a minha cabeça.
- Joana? Podes vir cá à frente?
Levantei-me, completamente chateada, e comecei a falar em surdina com a professora:
- Não há nada para explicar, o que é que quer que eu diga? Eu nasci assim.
Mas a professora de português estava decidida a apresentar-me à turma e ignorou o que eu lhe disse.
- Então Joana mas isso foi um acidente? O que é que aconteceu?
- Não aconteceu nada, eu nasci assim, e não quero dizer mais nada.
Começavam aqui dois longos anos com uma professora que me achava uma espécie de princesa rebelde, revoltada, insubordinada, que por mais boas notas que tivesse, nunca passava do 3.
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