sexta-feira, 20 de setembro de 2002

2.º ciclo

Seria de esperar que eu pudesse falar com a minha directora de turma sobre o que tinha acabado de acontecer mas só depois me apercebi que tinha acabado de entrar numa zona muito delicada. A minha directora de turma também começou a aula chamando-me para me apresentar à turma. Felizmente dessa vez tive a inteligência de nem sequer sair do meu lugar.

O segundo ciclo foi um autêntico circo de feras. Se soubesse o que sei hoje, tinha saído imediatamente daquela escola: O problema é que eu tinha vergonha de falar sobre isto em casa. Tinha vergonha que as pessoas reparassem tanto no meu braço e que isto estivesse a acontecer comigo. Que estivesse a influenciar tanto a minha vida. É um braço. Porra. Eu consigo escrever, consigo tirar apontamentos, consigo fazer os testes. Cumpro os requisitos para ser estudante, certo? Então deixem-me ser só mais uma estudante, uma página no dossier da turma, e deixem-me em paz.

Mas eu estava enganada. A aula de português e a de matemática eram só a base do bolo. As cerejas  no topo viriam a ser as aulas de educação física e de música: as aulas que requeriam verdadeiramente esforços físicos. E eram as duas de seguida, no mesmo dia. Sei que na noite antes não consegui dormir.

Surpreendentemente, no dia seguinte, ambas as aulas decorreram com a maior naturalidade possível. As professoras estavam à espera que eu não conseguisse fazer nada mas a verdade é que consegui fazer tudo. Sei correr, sei apanhar bolas, sei jogar basketball, handball, volleyball - metam ball no fim da palavra e eu consigo tudo. Melhor ainda, não estava nada à espera mas consegui tocar flauta sem qualquer problema. A flauta tem 8 buracos e eu tenho 8 dedos. Fomos feitas uma para a outra. Spoiler alert: gostei tanto da minha professora de música que casei com o filho dela. True story.

O eterno problema ao longo dos primeiros meses nesta escola? Tudo aquilo que eu fazia, fazia-me sentir dentro da jaula dos macaquinhos do jardim zoológico. Não havia passo que eu desse que não tivesse cinquenta olhos apontados para mim. Colegas com o braço dentro da manga da t-shirt a passarem por mim e a dizerem "Olha, sou a Joana!". Comida entornada no refeitório porque me empurravam o tabuleiro. Lanches deitados ao chão. Tudo o que eu fazia era motivo de piada. Mas nunca deixei mostrar que isso me afectava, e a páginas tantas acabei por ser apenas mais uma página no dossier da turma, como tanto queria.

segunda-feira, 16 de setembro de 2002

I'm a legal alien 👽

Quando era mais pequena uma parte de mim acreditava que eu tinha família extraterrestre, o que explicava a minha ausência de cotovelo e a minha mão com apenas três dedos. Num passeio ao planeta Terra esqueceram-se de mim e agora não têm gasolina para voltar. Só pode.

Nas séries e filmes fala-se muito de pessoas em cadeiras de rodas, trissomia 21, autismo, diabetes, surdez, e cegueira. Nunca se fala sobre deficiências dos membros superiores. Somos uma minoria dentro de uma minoria. Deixem-me lá passar à frente na caixa do supermercado se fazem favor.

É terrível crescer sem referências de pessoas iguais a nós. Em vinte e cinco anos de vida, só vi de relance um menino com um braço minimamente parecido ao meu. Tudo o resto, todos os outros aliens que como eu emigraram do planeta Marte com os seus braços de três dedos, andavam dispersados pela galáxia à procura uns dos outros. Todos os outros meninos com braços iguais ao meu, vi na internet: em facebooks, grupos de apoio, páginas de internet.

Quando tens dez anos queres ser igual às princesas dos filmes que vês. Já não é tortura suficiente seres morena com olhos castanhos (quando qualquer princesa que se preze é loira de olhos azuis), gorda (quando elas têm cinturinhas de vespa), ainda se vai a ver e têm todas umas mãozinhas delicadas com cinco dedos cada uma.

Já tu... És fruto de um one night stand com o Master Yoda.


Quando és uma miúda de dez anos queres ser a princesa Leia, não o Yoda.

Quando tens dez anos e não conheces ninguém como tu, sentes-te perdida, sentes-te injustiçada, pensas várias vezes "porquê eu?".

Quando estás na casa dos vinte, começas a preocupar-te: como é que vai ser quando eu tiver filhos?

Como é que lhes vou explicar?

Como é que eles vão lidar com isto na escola?

Será que os vão chatear?

Enquanto os filhos estão fora dos planos, estou convencida de que a melhor hipótese será mesmo explicar que o avô foi um sábio mestre jedi que até tinha um amigo que perdeu uma mão.

domingo, 15 de setembro de 2002

As pessoas vão ser más

Não adianta convencermo-nos do contrário. Tenhas oito ou oitenta anos, as pessoas vão ser más para ti quando tens uma deficiência.

A postura da minha família (e ainda bem que assim foi) relativamente ao meu braço sempre foi muito neutra: Apercebi-me por mim mesma da deficiência que tinha, sempre me deram tarefas para fazer como a qualquer criança da família, nunca ninguém me escondeu nem me tentaram refugiar no estatuto de coitadinha onde outras pessoas já me tentaram colocar.

Terminando a escola primária, onde convivi durante quatro anos com as mesmas pessoas, aproximam-se os terríveis anos: o segundo e terceiro ciclo. Permitam-me a crítica social, mas as escolas não estão preparadas para lidar com a mínima diferença. Eu não nasci com uma perna na testa nem com uma nádega no nariz - é apenas um braço mais curto que o outro - e ai!, os problemas que isto me causou.

Passei as férias de verão do quarto para o quinto ano mega ansiosa com aquilo que o futuro me iria reservar: colegas novos, escola nova, professores novos! Imensos cadernos diferentes, livros diferentes todos os dias, que bom! Na minha inocência achava que iam ser os melhores anos da minha vida.

No primeiro dia do quinto ano ano caiu-me a ficha. Se na minha escola primária existiam meninos de todas as cores e feitios - sentados em cadeiras de rodas, apoiados em muletas, com trissomia 21, sem ver, sem ouvir ou sem falar - a minha escola nova parecia uma fábrica de meninas e meninos todos iguais, que já se conheciam todos e vestiam-se da mesma maneira. Lembro-me de comprar a correr uma mochila verde-tropa para esconder a mochila cor-de-rosa com flores que tinha usado toda a minha (curta) vida.

Se na minha inocência pensava "se eu não mexer muito os braços nem falar sobre isto, ninguém vai reparar no meu braço nem na minha mão", posso afirmar que o primeiro dia do quinto ano foi um autêntico apalpa-mostra-e-conta. Ainda não se falava em bullying em 2002, mas tenho a certeza que foi isso que me aconteceu.

Ponham-se no meu lugar: tinha 10 anos e nunca ninguém tinha falado comigo sobre a minha deficiência. Vivia perfeitamente confortável com o meu corpo. E de repente há 30 pessoas a quererem tocar-lhe, a levantarem-no, a tentarem esticá-lo. A fazerem perguntas completamente estúpidas.

Como é que escreves?

Como é que consegues fazer x?

Como é que consegues fazer y?

Foi por causa do teu braço que os teus pais se divorciaram?

Porque é que não tentas endireitá-lo?

Porque é que não tentas dobrá-lo?

Já foste ao médico?

Isto tudo antes da primeira aula. Vou pedir ajuda a um dos professores, pensei eu. Isto não vai ser assim todos os dias, não pode. E entro na sala de aula. Íamos ter português. Perfeito, não requer esforços físicos, não dou nas vistas, fico com o braço para baixo o tempo inteiro e no fim da aula falo com a professora.

Problema: ao entrar na sala de aula a professora reparou imediatamente no meu braço. Eu ainda não me tinha apercebido de que era assim tão visível e aparentemente toda a gente reparava. Só queria ter um buraco onde me pudesse esconder.

Quando escolhi o lugar -bem cá atrás, claro - a professora aproximou-se, perguntou-me o nome e foi embora. Aliviada, pensei que pelo menos durante aquela hora e meia não iria ter problemas.

Estava redondamente enganada. Assim que terminou de fazer a chamada, a professora diz algo que ainda hoje enquanto adulta não consigo compreender:

- Temos aqui na turma uma menina (pausa) diferente. Ela vem aqui à frente falar um bocadinho sobre ela. Podes vir aqui, Joana?

Paralisei. Gelei. Se já existisse o Frozen em 2002 eu tinha saído porta fora a cantar o Let it Go com flocos de neve a pairar sobre a minha cabeça.

- Joana? Podes vir cá à frente?

Levantei-me, completamente chateada, e comecei a falar em surdina com a professora:

- Não há nada para explicar, o que é que quer que eu diga? Eu nasci assim.

Mas a professora de português estava decidida a apresentar-me à turma e ignorou o que eu lhe disse.

- Então Joana mas isso foi um acidente? O que é que aconteceu?

- Não aconteceu nada, eu nasci assim, e não quero dizer mais nada.

Começavam aqui dois longos anos com uma professora que me achava uma espécie de princesa rebelde, revoltada, insubordinada, que por mais boas notas que tivesse, nunca passava do 3.